Quando se pensa em vinícola, o local onde os vinhos são produzidos logo vem à cabeça a imagem de campos cobertos por videiras numa zona rural, o local onde tudo acontece, desde o cultivo das uvas, até o processo de vinificação, aquele que transforma a uva em vinho. Assim são as vinícolas tradicionais .
Contudo, um novo fenômeno vem crescendo ao redor do mundo, apesar de existir há tempos: são as vinícolas urbanas. Nelas, o produtor ou amante do vinho escolhe um set urbano para elaborar o fermentado de uva ao invés de propriedades rurais. Os vinhedos ficam distantes do local das instalações. Apenas o processo de vinificação, o blend das uvas, maturação, envelhecimento e engarrafamento é feito no local.
Em Paris, no bairro de Montmartre, a Clos Montmartre produz vinhos desde o séc. XII, próximo à Basílica de Sacre Coeur. As caves onde acontece o processo de produção dos vinhos ocupam antigos ateliers de artistas do bairro boêmio da cidade. O mesmo acontece em cidades como Veneza. A Tenuta Venissa cultiva as uvas e produz vinhos na ilha de Mazzorbo, distante a 20 minutos do centro de water-taxi.
A Red Hook Winery, que visitei em 2019. Ela fica no Pier 41 em Williamsburg, Nova Iorque, uma das áreas mais hypadas do bairro do Brooklyn, onde há uma vista deslumbrante para a Estátua da Liberdade.
As uvas são compradas de produtores de New York Estate. Os frutos vem de North Fork em Long Island e Finger Lakes, localizado ao norte do estado. A ideia é fazer vinhos, já exportados para a Inglaterra, que preservem a identidade do local onde é feito. No caso, vinhos com sabor de Nova York. É possível conhecer o local e fazer degustação por meio de visitas previamente agendadas.
Em 2019 o primeiro andar da Torre Eiffel, ícone mundial francês, recebeu uma vinícola urbana "pop up". A Winerie Parisienne, cuja sede oficial fica no bairro de Montreuil, a 12km do centro de Paris.
O bairro de Belém, em Lisboa, tem desde 2017 a Adega Belém, a poucos passos do Tejo. A produção do vinho é feita através de fermentação espontânea, sem grande intervenção enológica. Aliás, a baixa intervenção e a ausência de insumos enplógicos artificiais e químicos é quase unanimidade em quase todas as vinícolas urbanas, principalmente nas artesanais.
Em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, o engenheiro Eduardo Gastaldo, bisneto de italianos, se aproximou de vinhateiros daqui e de fora do Brasil. Curioso, queria saber como o vinho que bebia regularmente com o sogro é feito. Por isso, em 2017, passou a produzir vinhos na garagem de casa, no bairro de Chácara das Pedras, a 8km do centro de Porto Alegre.
Na primeira safra os vinhos foram fermentados na caçamba da caminhonete da família. Uma tiragem de 391 garrafas. No ano seguinte mil garrafas entre chardonnay, cabernet franc, pinot noir.
O que era uma curiosidade virou negócio. Há dois anos Gastaldo obteve o certificado do Ministério da Agricultura e passou a vender os vinhos Ruiz Gastaldi através do site da vinícola ou em algumas enotecas de Porto Alegre. "Uma das vantagens das vinícolas urbanas é que os clientes podem ver o processo de produção do vinho de perto sem necessidade de grande deslocamento", afirma.
As vinícolas urbanas artesanais que fazem vinhos para serem bebidos em casa e com os amigos são uma tendência e vem se estabelecendo em metrópoles como Nova Iorque, Londres, Amsterdã, Sidney, São Francisco, São Paulo e Rio de Janeiro.
O consumo de vinhos com essa pegada mais sustentável tem conquistado não só o mundo, mas também o paladar dos brasileiros, o que levou o jovem arquiteto Marcelo Maia Rosa, que assina, entre outros, o projeto do Instituto Moreira Salles São Paulo- IMS, a começar a fazer vinhos artesanais na lavanderia do apartamento que mora com a mulher e a filha pequena no bairro Vila Buarque, em São Paulo.
A paixão pelo vinho e pelos fermentados
O arquiteto já fermentava frutas e fazia pães de fermentação natural em casa. Como adora vinhos, resolveu produzir artesanais, puros, com fermentação espontânea para consumo da família e amigos.
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O projeto, que já tem quatro anos, leva o nome "Boas Vindas", uma homenagem à filha Caetana que nasceu na mesma época da criação da vinícola artesanal. A produção conta com a ajuda dos amigos Bruno Bertoli e Pedro Pineda, do vizinho bar de vinhos naturais Beverino.
Os rótulos, criativos e artísticos são desenhados por ele.
Os equipamentos para a microprodução são improvisados.
Com a ajuda do pai, o conceituado artista plástico Dudi Maia Rosa construiu uma prensa caseira para esmagar as uvas. Coisa de artista. "A graça é quando a uva começa a mexer e a fermentar", conta Marcelo.
Num determinado final de semana transportou 200 kg de uvas compradas em seu Honda Fit, que tinha como destino certo a lavanderia de seu apartamento.
A última produção do artista, safra 2021, são duas cuvées feitas com a uva tinta Cabernet Franc. "O melhor vinho que já fiz até agora, um vinho de prazer", diz.
Outras histórias de produção urbana de vinhos surgem de forma inusitada, consolidando velhas amizades. Assim ocorreu com três jovens profissionais vindas do mercado financeiro amantes do vinho, Carolina Caldeira, Gabi Pinheiro e Marília Caminha, que se reencontraram num curso de vinhos em São Paulo.
Depois disso elas decidiram então que queriam comprar uva e produzir seus próprios rótulos artesanais para consumo pessoal. Assim nasceu a Libertinagem, vinícola urbana localizada na casa de uma das proprietárias no bairro da Lapa , São Paulo.
"As uvas que vinificamos até agora vieram do sul do Brasil, mas para a próxima safra pretendemos comprar uvas de Petrolina, nordeste brasileiro", conta Carolina.
A Libertinagem tem como padrinho um dos maiores conhecedores de vinho natural por aqui, o sommelier Leo Reis, que também é sócio da Enoteca Saint Vin Saint e do produtor do sul Caio Mincarone, da cantina que leva seu sobrenome. A vinícola das amigas já está na terceira safra produzindo brancos e tintos.
Curiosos bebedores de vinho, o casal Carla Marins e Alexandre Soares, sempre viajavam para conhecer vinícolas na França e Argentina. Com a pandemia isso não foi mais possível. Ela carioca e desenhista industrial e ele, paulista e geólogo, decidiram então aderir ao movimento de produção de vinhos urbanos artesanais.
Em casa, começaram a desejar uma maior conexão com a terra. Foram ao Rio Grande do Sul, visitaram Acir Boroto e Ana Mincarone, ambos produtores de vinhos naturais, e viram na prática o que já sabiam na teoria. De volta ao Rio, Alexandre disse a Carla: "Vamos fazer vinho". Carla achou que o marido estivesse pensando em ir para o sul do Brasil e produzir por lá.
Mas não, o geólogo já havia decidido que seria no Rio. Compraram uvas em Santana do Livramento, fronteira com o Uruguai, transportadas até Jundiaí em caminhão refrigerado. De lá, as uvas seguiram para o Rio, em carro com ar condicionado, dirigido pelo casal. A primeira prensagem das uvas foi feita manualmente em um pano de prato.
Hoje, o casal conta que faz a micro vinificação no escritório de 6m no apartamento de 85 m, no bairro do Catete, Rio de Janeiro. Eles compraram tanques usados em cervejarias, caixas d'água de 100 litros e fizeram quatro tipos de vinhos: duas cuvées com cabernet franc, um tannat e riesling e dois Pet-Nats, que é o apelido dos espumantes petillant naturel, aquele que a fermentação acontece apenas uma vez na garrafa. Assunto para outra coluna.
Sabor de bairro
O bairro é muito presente nos nomes dados aos vinhos de produtores urbanos. "Vinhos do Catete", "Prainha do Aterro", "Deck da Prainha". Todos lugares próximos, diferentes entre si, assim como os vinhos, diz Carla. "Vamos tentar vinificar um rosé que se sair como o desejado, vai ganhar o nome de Laguinho do Parque Guinle. Será um vinho para beber na grama, olhando os patos", conta Carla.
Segundo Carla, a vinificação urbana artesanal não traz impacto ambiental nem prejudica a cidade. "O tempo que a vinícola ficava ao lado do vinhedo é um tempo passado. Hoje é possível transportar uvas de forma climatizada mantendo a sanidade das mesmas", afirma.
Outro charme dos vinhos produzidos pelas vinícolas urbanas artesanais são seus rótulos divertidos, que costumam ser assinados por artistas ou pelos próprios vinhateiros. Vinhos feitos com denominação de origem urbana, para dividir com os amigos.